Quem sabia que 25 foi o dia do dentista?
Cheguei em cima da hora.Cinco minutos apenas me separava daquela frase “Isso são horas ?” Do estacionamento ao prédio a caminhada parecia longa. As lojas no centro despertavam ainda. Na minha cabeça era madrugada. Mas eu estava ali com a sensação que tinha perdido muito tempo naquela caminhada. O elevador chega e sozinha cumprimento o ascensorista. Subimos em silencio, levando só o barulho do ventilador. Oitavo diz ele. Desço ainda apressando o passo .É cedo e ninguém na sala de espera.
-Paaaaai!! Cheguei.
- Oi minha filha, vamos entrando
-E isso são horas? -Vc não tem jeito.Quase não vai dar tempo da gente fazer nada . A Marta deve ta chegando ai. Mas aquela é outra, ta sempre atrasada também. Eu não sei a quem voces puxaram, mas eu sou assim, não aceito atraso. se eu marco com um cliente não o deixo esperando. Vocês deveriam fazer o mesmo
Sento na cadeira mas não antes de observar tudo em volta. Percebo algumas coisas na estante que deveriam estar noutro lugar e olho novamente no entorno. Sua velha mesa de trabalho, a antiga cadeira preta que balança e gira ao mesmo tempo, desconectadamente, aquele sofá preto em frente ao birô.É como se eu tivesse voltado no tempo.Uma pasta preta de couro, antiga, abandonada, descansa no chão, ao lado do sofá.
-Pai, o q essa pasta ta fazendo aqui?
-Não tenho mais canto pra nada minha filha, então deixei ai
-E isso o que é?
-Oh minha filha deixa isso pra lá
-Vamos trabalhar, depois voce olha isso.
-Ta certo pai, mas depois vamos da uma ajeitada nas coisas?Tá bom de pintar essas paredes. e trocar esse carpete.E o ventilador? Esse aí já deu o que tinha de dar.
-Lá vem você e a Marta. Eu já disse pra vocês:eu não vou mudar mais nada aqui não. Ta bom demais pra mim
Sento na cadeira e ele prende com duas presilhas bem pequenininhas, que passam em volta do meu pescoço, uma toalhinha com desenhos infantis. Na minha frente o ventilador velho de coluna, a janela aberta deixa correr um ventinho da manha, a cortina japonesa e muita, muita luz natural. Da janela vejo quase a mesma paisagem de muitos anos atrás. De novo, somente o IJF com seu heliporto, e as antenas nas coberturas dos edifícios. Sinal que o centro praticamente não mudou.
-Abra
Abro a boca. e fecho os olhos. Acomodo meus óculos na bandeja de inox ao lado e ele se concentra no trabalho. Braços fortes, Mãos firmes. Sem luvas,e muito menos aqueles óculos transparentes de soldador,aparatos de qualquer jovem dentista, porque isso não é coisa do seu tempo e ele nem quis se acostumar Também não tem atendente porque já não tem paciência de ensinar .
O motor preciso, certeiro grita no meu ouvido
-Água. Bocheche.
-Cuspa
-Ah meu deus isso aqui não esta dando certo.Aqui tinha aquele compressor mas o Caio mudou o sistema. Agora tenho que ficar regulando. Bem que eu disse que isso não ia dar certo.
-Agora pode ficar assim de boca fechada porque eu vou preparar
-Onde será que ele botou o material? Porque ele muda as coisas de lugar?
-E a Laninha como vai? Já esta falando muito bem o inglês?
-Nem tanto pai, pq ela convive muito com brasileiros. Mas ela está estudando.
-E já fala em voltar?
-Ah minha filha, podendo ter acabado logo essa faculdade...
-Eu não sei como vocês podem concordar com uma coisa dessas
-Não tem nada pra concordar pai.-A gente não pode ter controle sobre a vida dos filhos.É a vida dela e eu quero que ela seja feliz.-Quando voltar, termina.O tempo que perdeu na faculdade ganhou de experiência. Ela é muito nova ainda e isso não vai atrapalhar a vida dela por aqui não. Talvez ate ajude.
-E o Dieguinho? O que é mesmo que ele faz? Computação?
-É, na UECE, mas esse semestre ele trancou eu já lhe disse. Ele agora quer fazer UFC. Engenharia de teleinformática, e se passar, fica nas duas.
-Ah sei
-.E aquele brinco no nariz ele ainda ta usando ?
-Ta sim pai é o piercing.
-Esses modernismos!
Observo os movimentos. Mãos hábeis de artista,de escultor. Destreza. Firmeza. Experiência. Capricho em cada detalhe. Busca de perfeição quando esculpe e molda - --
Vamos experimentar agora
Segura aquela minúscula peça na posição correta .
Encaixa
.
-Agora morda. Ta alto?
-Ta sim pai
Escolhe uma broca. E com ela começa um paciente exercício pra deixar a peça no tamanho e altura certos, como num quebra cabeça que só cabe ali naquele lugar
Mede com um pequeno instrumento os milímetros, Experimenta de novo .Diminui a espessura com o motor e mede novamente.
-Ainda ta alto?
-Não. Agora ta bom
-Essa aqui eu vou mandar pro laboratório
-Água.
-Bocheche
-Pronto. Por hoje é só
Não tenho medo. Não sinto dor.Relaxo na cadeira como se aquilo fizesse parte do meu cotidiano. Eu, assim como mana, e pra surpresa de muita gente, tenho a capacidade de quase dormir na cadeira, entre conversas e trabalhos que não exigem anestesia, é claro.
E Ele, continua seu ritual de todos os dias, trabalhando pelo prazer de ser e continuar ativo. Com 82 anos resiste. Não se entrega apesar de não ganhar dinheiro. Se duvidar quase paga pra continuar trabalhando já que nunca cobrou seu oficio de ninguém da família, nem de filhos, noras, genros, netos, sobrinhos irmãos, cunhados, muitos amigos e sabe mais la de quem, além de parentes e aderentes. Pra ele é assim. Ganhar dos nossos, jamais!
É Ético. É certo.
Ali preguiça é palavrão, não se reclama da lida. Aprendi bem cedo que trabalho é isso. É prazer. É vida.
E amanha tem mais
E assim com o tempo, vou admirando esse homem, esse profissional sempre e cada vez mais, com suas qualidades e imperfeições
Queria parar o tempo. Te amo sempre pai
Parabéns!!. Dia 25 foi o Dia do Dentista